Grupo de Estudos Sobre Raça e Ações Afirmativas

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terça-feira, 30 de outubro de 2012

Não existem palavras inocentes


A socialite Carmem Mayrink Veiga ficou pobre. Precisou empenhar-se e partir para a luta. Para provar que daria conta do recado, disse em entrevista que sempre trabalhou como uma negra. Tradução: trabalho pesado é "coisa" de negro.
Fernando Henrique Cardoso estava em campanha eleitoral. Num laivo de humildade, confessou que possuía um "pé na senzala". Para os bons entendedores, ficou claro. O homem não era tão perfeito quanto parecia. Tinha nódoas de origem.
"Tenho aquilo roxo", pronunciou Fernando Collor de Melo. Delfim Netto se encarregou de pôr os pontos nos is. "Os brancos", ironizou ele, "têm aquilo rosa. Se você tem roxo, branco não é." Conclusão: o não ser branco constitui defeito que as pessoas precisam esconder.
As três histórias possuem o semblante do racismo brasileiro. É disfarçado, deturpado... Frequenta com tanta naturalidade o dia a dia que raramente nos damos conta de que estamos reforçando preconceitos. Por causa do preconceito, existe uma certa dificuldade de dizer que alguém é negro. Parece ofensivo. Criativos, inventamos uma gama de vocábulos para designar afrodescendentes. É o caso de mulato, moreno, escurinho, sarará, cabo verde, neguinho.
E por aí vai.
Reações indignadas
Muitas delas são eufemísticas. Constituem forma de adocicar o preconceito e torná-lo convenientemente invisível. "Desenvolvemos o preconceito de ter preconceito", disse Florestan Fernandes. A razão é simples. A legislação é bastante rigorosa. Crime de racismo figura entre os inafiançáveis e imprescritíveis – previsto na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XLII. Qualquer improcedência, o jornalista – e outros profissionais, é claro – responde nos tribunais.
Aconteceu com o colunista social Cláudio Cabral Ferreira, do jornal Tribuna do Ceará. Com o título: "Mais vítimas de feijoadas", ele escreveu: "Feijoada é comida de músico baiano, negros e índios — sub-raças, evidente", dizia artigo publicado por Ferreira no dia 11 de abril de 1997, no periódico (incomodado com a presença de músicos de Salvador, em temporada de shows na capital cearense).
O autor do texto acrescentou ainda: "Já disse e repito: feijoada não é comida para gente civilizada. É resposta para estes malcheirosos músicos baianos que andam por estas terras. Estes, donos de estômago de aço, comem qualquer porcaria e não sentem sequer mal-estar estomacal." O artigo provocou reações indignadas de grupos e entidades civis, como a Ordem dos Advogados do Brasil seção Ceará, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa e militantes contra o racismo do Nordeste. Levou o Ministério Público estadual a propor ação penal contra o colunista por crime de racismo – contravenção (infração) penal prevista no artigo 20 da Lei 7.716/89 e na Lei 8.081/90.
Use preto
O caso foi parar no Tribunal de Justiça (TJ) do Estado. "Foi só uma brincadeira", defendeu-se ele. O juiz aceitou a justificativa. Absolveu o acusado por entender que tudo não passava de galhofa e por não haver comprovação de dolo – vontade livre e consciente de praticar o crime. De acordo com a decisão do TJ, seria necessária a comprovação inequívoca do elemento subjetivo do tipo penal (dolo), que exige a descrição detalhada da conduta de forma a revelar a vontade deliberada de ofender. O promotor recorreu; a sentença foi contrariada no TJ; o caso terminou no Superior Tribunal de Justiça, contestado pelo Ministério Público estadual, no qual se confirmou o julgamento do TJ do Ceará e inocentou o jornalista. O gozador poderia pegar seis anos de xilindró e multa.
Ser racista explícito tornou-se, além de arriscado, politicamente incorreto. Pega mal. A sociedade patrulha, o movimento negro está atento. Mas a discriminação continua presente. As palavras, como frisou Camilo José Cela, são mais duradouras que as pedras. Elas não são, contudo, utilizadas à ventura (cada uma desempenha e possui sua função). É preciso discernir que não há sinonímia idêntica, tampouco perfeitas – seja morfologicamente ou sintaticamente. Não são, porém, criação da imprensa. A mídia apenas as reproduz. Expressões impregnadas de preconceitos usadas aqui e ali recorrem ao adjetivo negro. Todas possuem conotação negativa. Valem os exemplos de câmbio negro, mercado negro, buraco negro, dia negro, lista negra, humor negro, magia negra, peste negra, ovelha negra, nuvens negras.
Cortar negro do dicionário? Claro que não. A palavra é muito bem-vinda para designar africanos ou afrodescendentes. Zezé Mota é negra. Não é escurinha, crioula, negrinha, morena, negrona, de cor. Fora isso, xô! Quer indicar cor? Use preto.
Gozações no cofre
O politicamente correto não se restringe a questões raciais. Não é politicamente correto pôr em risco o meio ambiente. Não é politicamente correto contar piadinhas sobre mulher. Não é politicamente correto usar termos que, de uma forma ou de outra, reforçam preconceitos. Homossexual é homossexual ou gay. Bissexual é bissexual. Travesti é travesti. Lésbica é lésbica. Nada de bicha, veado, fresco, boneca, traveco, gilete, sapatão, sapato 45. Cego é cego. Surdo é surdo. Mudo é mudo. Às vezes, portador de necessidades especiais. Nunca aleijado, aleijão, defeituoso, deformado, retardado, mongoloide, débil mental.
Pobre é pobre ou pessoa de baixa renda, se possível, dizer a renda. Sem essa de pé-rapado, salário mínimo, roto, pobretão. Idoso é idoso (melhor informar a idade da pessoa). Deixe de fora vovô, velho, decrépito, senil, gagá, velhote, titio, mais pra lá do que pra cá, esclerosado, pé na cova, hora extra no mundo. Nordestino é nordestino. Paraibano é paraibano. Piauiense é piauiense. Esqueça nortista, paraíba, piauizeiro, retirante, cabeça-chata, pau-de-arara, baiano cansado.
Pessoa baixa é baixa (preferencialmente dizer a altura). Nanica, pigmeu, pintor de rodapé, gabiru, anão de jardim, salva-vidas de aquário? Tranque as gozações no cofre e jogue a chave fora. Maltratar é maltratar. Desacreditar é desacreditar. Nada de judiar, que evoca judeu. Ou denegrir, que remete a negro.
O diabo nunca tira férias
Cada vez mais o Brasil torna-se um país de nomenclaturas, terminologias, designações onomásticas, etc. Todo mundo aprendeu a dar nome aos bois. Os bois é que são poucos e magros. A Medicina, que cada vez cura menos, passou a ser 88% semântica e 12% terapêutica. A Economia, que só produz numerologia em forma verbal, é hoje 93% tapeação sintática e 7% acaso. E assim por diante. No Brasil, a semântica e a etimologia mudaram completamente, subverteram a compreensão.
É isso. Policie a linguagem. E não peque pela omissão. Fale mais, cobre mais. Faça barulho quando autoridades, que servem de modelo, recorrerem, mesmo inconscientemente, a expressões preconceituosas. É jeito de conceder visibilidade ao preconceito envergonhado.
Não existem palavras inocentes. O espaço social de onde emanam, que não exclui as relações mais triviais e menos banais, sempre reflete relações ideológicas. Nenhum discurso é neutro ou foge da inerência de um certo grau de subjetividade que está impregnado no sujeito.
A luta é difícil porque se trava contra espectros. Vale, aí, a receita de Leonel Brizola: para lutar contra o diabo, é preciso recorrer a todos os demônios. Afinal, o diabo nunca tira férias. Se necessário, faz hora extra. Quando não pode comparecer, manda a sogra. Resistir a ele? Só há uma receita. É a eterna vigilância.
***
[Tarcizio Macedo é estudante de Jornalismo, Belém, PA]

2 comentários:

  1. Sim, muito legal esse texto, só faltou ao nobre estudante Tarcizio Macedo citar a verdadeira autoria. 99,99% do referido texto não pertence ao estudante de jornalismo que assina o presente artigo.

    O texto original pode ser lido em:

    SQUARISI, Dad; SQUARASI, Arlete Salvador. A Arte de Escrever Bem: um guia para jornalistas e profissionais do texto. 7 ed. São Paulo: Contexto, 2010, pág. 86-88.

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