Grupo de Estudos Sobre Raça e Ações Afirmativas

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domingo, 7 de abril de 2013

A invisibilidade das Comunidades Quilombolas de Mato Grosso do Sul



Por Nayhara Almeida de Sousa

Atualmente o que a maioria das pessoas entende por comunidade quilombola está muito distante da realidade. O que é usualmente entendido por comunidade remanescente quilombola se remete à definição utilizada no período colonial brasileiro, mais exatamente àquela do século XVIII, para a qual quilombo era “toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles” (MOURA, 1981: p.16). E no estado de Mato Grosso do Sul não seria diferente, apesar de ter mais de 21 comunidades reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares, ainda não tem avanços significativos na questão de reconhecimento das comunidades quilombolas como grupos sociais e, portanto, com direitos.
Com a publicação do decreto de 4.887/2003 temos a regularização de todo o  procedimento que efetiva a titulação das terras, além de uma redefinição do conceito de comunidade quilombola, diferenciando-se daquela antiga que era marcada pela colonização, e passando agora a ser compreendida através da auto determinação dos povos. Conforme o artigo 2º do Decreto,
 consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, seguindo critérios de autoafirmação, com a trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais especificas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida (BRASIL, 2008).

Retomando o histórico sobre o assunto, em 1988 foi reconhecido pela Constituição Brasileira o direito de propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes quilombolas, através do artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.” (BRASIL, 2008). O reconhecimento de propriedade das terras quilombolas pela Constituição de 1988 não foi suficiente para a efetiva regularização desses territórios, e contestações contrárias às titulações eram fundamentadas na falta de regulamentação no processo de demarcação e titulação dessas terras.
Mas, foi com a publicação do decreto 4.887, no dia 20 de novembro de 2003 se estabeleceu a forma de como proceder à demarcação e titulação do território quilombola. Da década de 1980 até 2003 se desenrolaram anos de silêncio quanto a este assunto e, apesar de haver milhares de comunidades espalhadas pelos estados brasileiros, ainda há a impressão de inexistência ou de distancia das comunidades, o que remete muitas pessoas à noção de quilombo do período colonial.
Vários grupos contrários aos direitos adquiridos pelas comunidades se manifestaram. O partido Democratas (DEM) ajuizou em 2004 uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) no Supremo Tribunal Federal pela publicação do decreto 4.887. A ADIn é contrária ao critério de autoatribuição para a identificação das comunidades remanescentes quilombolas, e o caso ainda aguarda julgamento.
De acordo com Santos (2010), o ano de 2007 ficou marcado pelo aumento dos conflitos no estado do Mato Grosso do Sul entre as comunidades rurais quilombolas e o Governo do Estado, Sindicato Rural de Dourados; as Prefeituras Municipais de Nioaque, Dourados e Sonora; grandes proprietários de terras; e a Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (FAMASUL). [1]
A partir da definição ultrapassada sobre o que é uma comunidade remanescente quilombola, criou-se uma situação constrangedora para o Instituto Histórico Geográfico de Mato Grosso do Sul (IHG-MS), que reforçou ainda mais a posição contrária ao reconhecimento das comunidades quilombolas no estado de MS. Em 2008 o então presidente do IHS-MG Hildebrando Campestrini exalou um parecer negando a existência de qualquer formação de comunidades quilombolas no estado de Mato Grosso do Sul. O parecer dizia o seguinte:
                               
Considerando que o sul de Mato Grosso despontou no cenário econômico brasileiro como área de produção pecuária, após as décadas de 1830/1840, quando a escravidão já se encontrava em processo gradativo de desarticulação; Considerando que o território hoje sul-mato-grossense se encontrava fora da rota de fuga dos escravos egressos dos centros econômicos mais significativos à época do regime escravista (SP, MG e região norte de MT); Considerando que havia, no último quartel do século XIX, forte empenho de líderes pela libertação de escravos, a exemplo das Juntas de Emancipação nas principais vilas e cidades do sul de Mato Grosso, com resultados positivos; Considerando que, sobretudo após a Guerra da Tríplice Aliança, o número de escravos no sul de Mato Grosso era de reduzido significado; Considerando que não há documentos, nem ao menos indícios, que provem a existência, no atual Mato Grosso do Sul, de quilombos, mesmo que tardios. Manifestam-se, por unanimidade, no sentido de não reconhecer a presença de quaisquer núcleos quilombolas remanescentes em nosso Estado. Campo Grande, 10 de setembro de 2008. Hildebrando Campestrini – Presidente (SANTOS, 2010: p.20).
Como é perceptível no Parecer Quilombola do IGH-MS, a visão sobre as comunidades está presa em um passado colonial, como algo exótico, perdido e afastado da noção de cidadão brasileiro. O parecer ganhou destaque na mídia local e teve ampla recepção pelos produtores agropecuários, sendo largamente difundido pela FAMASUL através da circular nº 041/2009, ao Secretário da Secretaria de Estado de Meio Ambiente, das Cidades, do Planejamento, da Ciência e Tecnologia/SEMAC. Em seu ofício a FAMASUL afirma a não existência de remanescentes quilombolas no Mato Grosso do Sul.
O Parecer Quilombola produzido pelo IHG-MS encara comunidades remanescentes como aquele conceito da época imperial e deixa de perceber como bem lembra Amaral Filho (2011) que os remanescentes de quilombolas surgem recriando um processo identitário e não o repetindo. Recriando seus laços com a África, “eles passam a se comportar no Pós-Colonial diaspórico como um grupo multicultural miscigenado diferente de sua noção clássica” (AMARAL FILHO, 2011).
A colonização, apesar de um processo extinto oficialmente, permanece enraizada nos dias atuais, como fator excludente e marginalizador de determinados grupos sociais. No caso de Mato Grosso do Sul, essa situação é facilmente identificada quando se trata da garantia de direitos das populações indígenas e comunidades quilombolas.
No discurso da mestiçagem, baseado na ideia de um Brasil mestiço, onde o moreno é o termo ideal de representação da população afro-brasileira, o termo negro deixa de ser mencionado de forma positiva pela sociedade brasileira, pois a ideia mitológica de democracia racial encontra suas bases no moreno. A troca de um termo por outro não significou um tratamento respeitoso para a população negra, sua história e suas memórias, e não resultou numa equidade nas oportunidades entre todos no Brasil. Antes disso, a criação de um discurso de democracia racial “contribuiu” para que se afundasse no silenciamento o racismo vivenciado no Brasil, fortalecendo um discurso hipócrita e controverso.
É importante entender porque é tão popular a utilização do termo moreno, quando se refere à população afro-brasileira.  Uma breve análise na história de formação da identidade nacional, (ORTIZ, 2003) é possível perceber como foi a movimentação dos grandes intelectuais e dirigentes nacionais para a formulação de teorias e projetos sobre um modelo nação brasileira. Este modelo de nação era pensado para o futuro, um futuro que através da miscigenação racial, se tornaria branco.
Mato Grosso do Sul não fugiu aos moldes nacionais quanto à formação de uma identidade regional baseada na falsa ideia de democracia racial e de branquidade. Este modelo foi refletindo diretamente na invisibilidade dos remanescentes quilombolas do Estado. Um exemplo, Campo Grande, que é conhecida como a cidade morena, não possui menção alguma sobre a vida de camponeses e nem de escravizados, em nenhum dos seus 14 museus (Santos, 2010: p. 31).
 Não é possível que atualmente, dirigentes e intelectuais ainda expressem noções sobre o que é ser remanescente quilombola baseados em conceituações cristalizadas em um passado colonial. A ideia sobre ser quilombola hoje ultrapassa a noção colonial e se aproxima muito mais de uma ressignificação do caráter multicultural do quilombo surgido no território africano, mas muito diferente da conceituação de quilombo feita pelo colonizador. E ainda, não é possível permitir, que ideias como a do Parecer Quilombola, após a criminalização do racismo em 1988, sejam formas de propagação de racismo sutil através da negação da existência de comunidades quilombolas no estado.
A afirmação do Parecer demonstra muito dos aspectos da invisibilidade social e econômica da população negra brasileira. A população quilombola faz uso de terras reconhecidas como patrimônio histórico pelo Estado Brasileiro, compartilhando valores comuns, parentesco, práticas culturais. Devemos ultrapassar esse entendimento vindo do período colonial que prejudica a existência e garantia de direitos civis, econômicos, sociais e culturais das comunidades remanescentes quilombolas no Brasil.



Referências Bibliográficas

AMARAL FILHO, N. C. Mídia e Quilombos na Amazônia. Relações Raciais no Brasil: pesquisas contemporâneas. Org. Valter Roberto Silvério, Regina Pahim Pinto, Fúlvia Rosemberg. São Paulo: Contexto, 2011.

SANTOS, C. A. B. P dos. Fiéis descendentes redes-irmandades no pós-abolição entre as comunidades negras rurais sul-mato-grossenses. Tese de Doutorado em Antropologia Social. UNB, Brasília, 2010.

BRASIL, Ministério Público Federal. Procuradoria Geral da Republica, 2 região. Territórios Quilombolas e Constituição: A ADI 3.239 e a Constitucionalidade do Decreto 4,887/03. Rio de Janeiro, 03 de março de 2008.